domingo, 24 de fevereiro de 2013

Porção de versos

Porção de versos


Flor morta

Todos os dias
José aguava
uma flor morta.
Enquanto o fazia,
consolava-a:
"és a mais bela que
meus olhos já miraram".
E dia após dia
inundava-a
com seu amor improdutivo.
Demorou a perceber
que a flor recusava
seus carinhos.



Transcendente

Quem foi que disse
que eu nada levo dessa vida?
Quem proferiu tal coisa
tão irrefletida?
E as amizades, os sentimentos
os sinais impressos na minha alma,
tão belo acalento?
Levo também a minha razão
meu processo de evolução
meu amor por quem é parte de mim.
Quem disse que não leva nada
o fez por não saber
Descobrirá que o que carrega
não é nada além de seu ser.



Ditadura

A ditadura está à venda
na farmácia da esquina
no saco de cocaína
(que o jovem leva na mão)
nos programas de televisão.

A ditadura é vendida
na conversa do café
na revista que é lida;
pelo professor que repete
pelo pai que obriga.

Compramos todos a ditadura
engolindo tolas ideias
exigindo certas posturas
olhando feio o diferente:
intolerância, controle, razão.



Desrealização

Seus cabelos são só cabelos.
Sua pele ainda é pele.
Seus olhos são belos mas enxergam mal.
Seu toque não me desperta mais.
O som não sai mais da sua boca.
Ontem olhei para você
e vi apenas uma mulher.



Chuva

Sua lágrima caiu no meu rosto
e fez brotar em mim uma lágrima.
Tomou-me de susto,
caí aos prantos no seu pranto.
O seu choro faz nascer a vida
e a minha vida então renasce...



Arremedo de céu

Belo céu vermelho duma noite mal-amada!
As árvores dançam ao ritmo dos ventos
atentas ao mínimo movimento
das estrelas e da lua desgarrada!

Sublime painel rubro da meia-noite desalmada!
Onde o silêncio é soberano e impera,
testemunha una do choro que se entrega
às luzes infinitas da Via-Láctea!

Manto escarlatíssimo que cede voz à alvorada!
Ergue-se e põe-se taciturno,
Véu da visão tão contemplada!

Mesmo que meus olhos fechem-se
Sei que meu espírito permanecerá aqui
sempre a admirar-te, ó eterno rubi!



Poeira cósmica

Porque tentei agarrar a estrela,
em minhas mãos sobrou apenas 
poeira cósmica.

Postados em 24/02/2013. Nicolas Peixoto.







quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Lamentações d'uma alma decadente

Lamentações d'uma alma decadente

     Sempre que vivemos um amor, este é o grande amor da nossa vida até ali. Na verdade, nem sempre. Mas para mim, nesse momento, vivo o grande amor da minha vida. É necessário que se faça algumas correções: na verdade não vivo o amor, sofro o amor. Sofro porque há correspondência, mas a carta não chegou na hora, atrasou-se em alguns anos. Encantei-me, entreguei-me, desapontei-me. O sentimento estava morto, e assim deveria ficar. Sinto-me como um cavaleiro errante, que desbravando campos, florestas e montanhas, encontra a sua princesa e casa-se com ela, e torna-se seu salvador. Mas a conclusão da história não é assim para mim.
     Percorri (e percorro) calabouços e vales para encontrar a minha princesa anônima, e quando lá cheguei, outro já havia despojado-a: Ela já estava noiva. Apesar disso, quebramos algumas barreiras (não as regras) e nos aproximamos até que nossa amizade chegasse ao ápice: o bardo não-iniciado cantou sua poesia de amor. A donzela apreciou (qual mocinha não gosta de virar a musa d'algum miserável?), mas permanecemos assim. Eu visito seu coração, mas não o habito. Então, por honra, prudência e amor próprio, recolhi meu acampamento, sangrando onde ninguém houvera ferido antes. Com a integridade atingida, visitei o submundo.
     Lugar deplorável, mas há poesia. A maior parte da minha poesia vem de lá. Ninguém gosta do lugar, mas nos acostumamos de tal forma que viramos nativos. Uns até acabam defendendo aquilo. Foi assim que virei um frequentador do submundo, e mais tarde, do inferno (porque não se trata do mesmo lugar). Há muitas diferenças (e semelhanças) entre eles, mas reservarei-me em dizer apenas que o submundo é mais triste e melancólico, e há serenidade nessa melancolia. O inferno é a loucura. Lá sentimos angústia constante, nada é equânime, nada parece passageiro. Vira e mexe nos sentimos perdidos e pressionados, e não nos damos conta de que talvez estejamos perambulando pelos vales do inferno.Por favor, não confunda com o inferno cristão: nesse aqui, não se cai por fazer necessariamente o mal.
     Faz-se muitas amizades nesses dois ambientes, mas nunca encontrei um amigo lá. Mas tenho cadeira certa no submundo, num canto escuro duma sombra tranquila. Dali dá para ouvir um som belo do órgão, e os candelabros me permitem escrever poemas. A verdade é que parece que meus dias como cavaleiro estão terminados, já que pendurei a espada e dei meu escudo para um desabrigado proteger-se da chuva. Meu cavalo fugiu. O que me sobrou foram meus pensamentos que viram palavras escritas. Às vezes há quem aplauda minha depressão, e ganho a vida vivendo assim.
     Sou amigo do absurdo, porque não há nada que ele rejeite: se parece irregular, irracional, caótico, é coisa do absurdo. Embriaguei-me de palavras e pensamentos, e esqueci que deveria estar maldizendo meu destino e chorar por uma mulher que não é mais virgem. É mulher de outro, não é mais donzela, apesar de portar-se ainda como tal. É hipócrita, perfeita para um frequentador do submundo (a luz daqui é a luz da lua, não há Estrela alguma nesse céu). Sua falsidade talvez engane até São Pedro, e talvez este a deixaria entrar no talvez-céu. Senti o cheiro da sua luxúria quando vi a sua divindade cair por terra, junto com o sangue de sua iniciação. Não passa de uma plebeia qualquer vestida com uma capa de nobre, aquele espírito ganancioso. Pior que ser assim é amar alguém assim. É como cultuar os deuses das trevas. Por isso estou aqui nesse buraco escrevendo. Maldito seja todo e qualquer amante desta mulher impura! Maldito seja eu! Já sou, obrigado.
     Há alguns anos espalharam por aí que todas as princesas já haviam sido salvas, que só restaram as meretrizes; e que cavaleiros nobres disputam-nas na espada! Olha a que ponto o mundo chegou. Por falar em mundo, não sei bem como ele anda, já que há alguns meses não saio daqui. Mas eu ainda mando cartas para Ela. É uma das poucas comunicações que mantenho com esse mundo imundo. Imundo também é quem o adora. Ela o adora. Adora a todos, até a mim. Adorar não me parece o suficiente então, já que aqui banalizamos tal palavra. Diz que já esteve por aqui, mas não acredito, Ela não teria tal aptidão. Está muito ocupada cuidando de rebanhos, das coisas da casa e do marido. Ah, o marido! Desgraçado que roubou e rouba a sua juventude! Pois que roube então!
     Ainda sou jovem, apesar da compreensão de mundo de um velho sábio. Questões como linearidade e simetria eu deixo para os engenheiros. Quem quiser ler-me que me entenda! Ainda faço o esforço de usar o idioma vigente aqui. É de se admirar que em apenas vinte e um anos eu já tenha me tornado fluente, podendo até escrever poemas. Mas não nos esqueçamos que isso aqui se trata d'Ela, aquela miserável. O pior é que comprei uma casa quando sonhava em casar-me com Ela. Que bom, doei aos pobres! Foi na mesma época que fui para o inferno. Ah, o inferno! Recebi tanta carga de angústia que pensei em matá-la. Para não cometer tal assassinato, tive de matar a mim mesmo. E estou bem nesse pós-vida. Ela terá filhos, e todos terão sua cara. Tomara que não puxem seu caráter. Mas seria bom se tivessem seus olhos. Ah, seus olhos, não consigo esquecê-los. Nem de seus cabelos.
     Certa vez, escrevia à mesa, e Ela estava sentada próxima. Fingi que não havia entendido uma palavra, e chamei-a para lê-la para mim. Deitou-se sobre a mesa. Seus cabelos, em meu rosto. Naquele fragmento temporal pude sentir o perfume mais agradável que já senti nessa vida. Inspirava em seus cabelos, inspirava-a e transpirava. Como desejei que aquele momento durasse! E ela sorriu-me... Sorriu-me! Perdoe-me, leitor (se é que há algum), se o papel em que escrevo estiver úmido e borrado, é que não consigo contê-las, não posso. Não, estou sentindo aquilo novamente!
     Um pobre-coitado próximo me consola. Traz-me um copo d'água, diz-me umas palavras; passou por queda semelhante. Meus olhos lacrimabundos olham para o céu para saberem se já amanheceu. Mas não amanheceu. Não amanhece aqui, lembro-me pesarosamente. Recupero a respiração e cubro-me com um pedaço de sombra. Cada palavra que escrevo machuca: machuca a mão, a alma, o coração. Ela também escreve poesias. Finge que sofre, a poetisa. Sempre mostrava-me seus poemas. Eu os lia de coração aberto, sofrendo suas dores e sonhando seus desejos. Quero os elogios de volta. Na última carta que me enviou, mandou-me para o inferno. Ela não tem noção da literalidade disso; Ela não sabe por onde ando. Acabo de ser visitado pelo vigia do submundo: veio dizer-me que meus níveis de angústia e fúria estão acima do aceitável. Mandou-me para o inferno. Estás feliz agora, mulher?!
     Estou no inferno. Posso sair daqui quando me acalmar, mas essa não é a vontade do dragão. Longe disso. Aqui tenho todo o combustível para aqui permanecer. Deixaram comigo algumas fotos dela, para que a minha angústia permaneça. Quando olho para estas figuras, sinto-me como se estivesse lá com Ela, vivendo aquele momento. Desgraçada! Deram-me uma foto com o estúpido do marido! Eu a queimo nas chamas naturais, aumentando o meu ódio e a minha estadia por aqui! A boca sangra, caio no chão, riem de mim. Estão em situação semelhante à minha, mas estes já estão com a alma totalmente corrompida. Sinto vontade de chorar, mas isto é proibido por aqui. Como desejo voltar para o submundo! Não posso escrever aqui (também é proibido), posso apenas olhar, sou um passivo. Não! Não sou daqui! Acalme-se! Acalme-me!
     Deito-me em meio às chamas. Tento lembrar-me... Lembrar-me de quando a conheci... Tempos doces aqueles! Vivíamos brigando no início, e não sabíamos ainda que tratava-se de amor! Nossos amigos perceberam que havia amor nisso tudo, e justo nós, os últimos a nos dar conta! E depois, uma amizade como nunca vi antes brotou, e nossos olhares já significavam algo mais... Sim! Foi assim mesmo! Lembro-me muito bem! Começamos devagar, sou cortês... Que abraço maravilhoso! Carregado de libido, sim, era o que tínhamos à época! Oh, por que me deixaste, minha Estrela? Por que te tornaste fria, mudaste-te de constelação? Não sabes que cá eu pereço, sem uma vida? Minha vida és tu e somente tu, Vésper! Sim, não te odeio, pois odiar-te é odiar a mim mesmo! Ainda pulsa um coração aqui, pulsa por ti! Sim, não és mais virgem, é verdade. Abandonaste-me, é verdade. Mas ainda te amo, e essa é a frase mais difícil de dizer! Não te quero mal, sou o teu bem! Oh! O dragão incomodou-se com tanta vida, com tanta paixão! Voltarei para o submundo!
     Ah! Aqui posso ficar na minha melancolia sereníssima! Aqui ninguém me vê! Aqui é meu lar! Cumprimento uns iguais, e retorno para a minha penumbra. Estou feliz: agora sim posso chorar. Dragão estúpido! Não percebeu que trouxe comigo as fotos d'Ela! Agora sim, contemplo-as, contemplo-a, choro no meu conforto. Desculpe se muito choro, é que ainda não pude me conformar, sou tão jovem, tanto amor para amar... E daqui desse umbral mal posso ver-te, minha celeste. Este é o meu castigo, esta é a minha benção! Farias uma prece para mim, uma única vez na vida? Confortaria este coração que já não habita este corpo?
     Ah! Como dói lembrar-me de que há muito estou morto...!

07/02/2013. Nicolas Peixoto.