UM AUTOR
Eu nunca quis ser o dono do mundo.
Não, minha meta de vida era viver com a notoriedade de uma formiguinha. Não
quis nunca ser o melhor em nada. Não era o melhor aluno, não era o mais veloz,
ou mesmo o mais querido. Gostava de notar que minhas saídas nunca eram notadas.
Aliás, sou o irmão do meio: aquele que perde a coroa e vira um número. Mas isso
não me aborrecia; eu tinha um prazer secreto em me sentir apagado, misturado,
contingente.
Meus amigos, eu não os tive:
esforcei-me bastante para não ser digno da amizade de ninguém. Fugi de maneira
exemplar dos poucos ousados que tentaram penetrar minha realidade. Certa vez,
um colega de escola foi até a minha casa, chamou-me ao portão. Permaneci
deitado em minha cama, cuidando para que mesmo minha respiração não fizesse o
menor barulho e me denunciasse. Ele até que insistiu bastante, mas o meu muro
(impecavelmente construído com o labor dos anos, devo dizer) rompeu seu punho,
cansou sua voz: vencido, deu meia-volta e desceu a rua. Observei-o pela minha
janela, triunfante.
A minha vida amorosa é a história da
não-vida amorosa: ela nunca morreu, pois nunca dei vida a ela. Clara: essa
menina me deu trabalho. Quase me desviou de meu caminho. Ela tinha todas
aquelas qualidades que o ser humano, não se sabe quando, elegeu como exemplares. Clara conseguiu
perseguir-me por um ano, feito único e louvável. Clara obrigou-me a exprimir
palavras, pois o meu silêncio já perdia força. Uma carta! A primeira e única
carta que já remeti a alguém. Nunca recebi uma resposta, talvez seu silêncio já
a seja.
Não é que eu seja apático, que eu
não sinta o amor (mas que palavra
imprecisa!), eu só quero cumprir com o meu objetivo. Eu preciso. Os amigos que
nunca tive têm amigos, as mulheres cujo amor neguei já estão comprometidas,
creio. Minha família me compreendeu bem: nunca um telefonema. Talvez a maior
mostra de amor que já recebi.
Ao longo dos anos, fui nutrido por
livros: não me cobram nada, não me buscam, não preciso amá-los. E, ainda,
proporcionam a melhor conversa que podemos obter. Obter. Porque essa conversa
não é líquida, ela é palpável. Eu TENHO Borges. Eu TENHO Göethe. Sem pedir, sem
dar, sem me explicar. Abro o livro e pronto. Sou dono daquilo tudo – um dono
silencioso e anônimo.
Não passo meu conhecimento para
ninguém e nem quero fazê-lo. Não sou professor, nem mestre, nem profeta. Sou
apenas uma formiguinha. Uma formiga que sabe que sabe, mas que não ousa mostrar
sabê-lo. Concorde comigo, é uma posição deveras confortável: ninguém inveja a
folhinha que carrego, pois não sabem o que ela esconde. Assim, sou um ser que
sempre tentou bastar a si: um ser-de-si e ser-para-si. Foi assim que segui
vivendo num buraco afastado, encontrando pessoas apenas para práticas mercantis
e trocas de serviços. Não nego que a troca entre seres humanos seja necessária,
o que não admito é o seu excesso.
Caminhei como uma sombra sem
referente por longos anos, e isso me alegrava. A cada dia solitário, a cada
dificuldade que superava sozinho, sentia-me mais forte. Fui cumprindo meu
objetivo de coadjuvante até que o destino me amaldiçoasse. Isso se algo
grandioso como destino existir (a
ideia é assombrosa, não consigo concebê-la). Até que o acaso me batesse na
face, melhor dizendo.
Encontrei em um sebo um velho livro,
de capa dura marrom, mas em lugar algum havia o nome de seu autor. Suas páginas
carregavam palavras fortes – não me atrevo a lê-las novamente para dizer a
você. Tive a infelicidade de comprá-lo e, ao chegar a casa, larguei tudo para
poder lê-lo.
A leitura estendeu-se por uma
semana, com intervalos apenas para comer e ir ao banheiro. Na profundidade
daquelas palavras, o maldito autor se escondia. Anônimo. Ousadia maior, muito
maior que a minha: publicar tal livro e ocultar seu nome. Aquilo me causou um
mal terrível, senti-me ultrapassado, uma criança que pensa já ser crescida.
Comecei a imaginar possíveis nomes
para o nosso autor. Com aquelas palavras, tão substanciais, só poderia ser
filósofo. E que nome teria um filósofo? Seria ele alemão (boa parte de minhas
leituras é feita nesse idioma)? Não, não era filósofo, ele não cometeria esse
erro. Usava palavras com tamanha sagacidade que só poderia ser poeta, então.
Ou, talvez, um romancista que se aventurava num ensaio, ocultando até mesmo sua
técnica!
Não
consegui penetrar tais palavras a ponto de alcançar seu criador, não consegui
traçar um caminho para encontrá-lo. Nem mesmo uma sigla, nada. Não havia
referências quanto à publicação, ano, língua, tradução... Fui abatido,
terrivelmente derrotado por alguém maior que eu, alguém que fala (e que fala!)
e nem ao menos existe!
Esse
fato em si já foi o suficiente para me fazer pensar em toda a minha existência,
meus planos, objetivos, tentativas de não existir. A única coisa a que me
dediquei arduamente durante todos esses anos, destruída por um às do anonimato,
mestre das palavras. Porém, sua cartada maior veio ao fim do livro: o último
parágrafo...................................................................................................
Impossível
reproduzi-lo!
Ao terminar o livro, um
arrependimento mortal invadiu meu ser. Nosso autor (não contente em ter
arruinado meu propósito – e nada sou além de meu propósito) não é nada, nem
ninguém. Ele não escreveu o livro: passou para mim tal missão. O livro é de
minha autoria. Sou EU o autor!
Fiquei tão atordoado com essa
revelação, esse golpe baixo. Além de desbancar minha sombra, o não-sujeito
ainda me tornou autor do livro. Não conseguia mais ler/escrever aquelas
palavras (mas o fazia, mesmo com desprezo), palavras de outrem, minhas próprias
palavras. Deu-me tudo o que exemplarmente recusei, jogou-me aos holofotes, nu.
Permaneci sujo, cansado, encarando aquele livro, MEU livro. E também minha
desgraça. E foi assim que me tornei o dono do mundo.
* * *
Editado em 09/03/2015.
Nicolas Peixoto