quinta-feira, 12 de março de 2015


UM AUTOR

            Eu nunca quis ser o dono do mundo. Não, minha meta de vida era viver com a notoriedade de uma formiguinha. Não quis nunca ser o melhor em nada. Não era o melhor aluno, não era o mais veloz, ou mesmo o mais querido. Gostava de notar que minhas saídas nunca eram notadas. Aliás, sou o irmão do meio: aquele que perde a coroa e vira um número. Mas isso não me aborrecia; eu tinha um prazer secreto em me sentir apagado, misturado, contingente.
            Meus amigos, eu não os tive: esforcei-me bastante para não ser digno da amizade de ninguém. Fugi de maneira exemplar dos poucos ousados que tentaram penetrar minha realidade. Certa vez, um colega de escola foi até a minha casa, chamou-me ao portão. Permaneci deitado em minha cama, cuidando para que mesmo minha respiração não fizesse o menor barulho e me denunciasse. Ele até que insistiu bastante, mas o meu muro (impecavelmente construído com o labor dos anos, devo dizer) rompeu seu punho, cansou sua voz: vencido, deu meia-volta e desceu a rua. Observei-o pela minha janela, triunfante.
            A minha vida amorosa é a história da não-vida amorosa: ela nunca morreu, pois nunca dei vida a ela. Clara: essa menina me deu trabalho. Quase me desviou de meu caminho. Ela tinha todas aquelas qualidades que o ser humano, não se sabe quando, elegeu como exemplares. Clara conseguiu perseguir-me por um ano, feito único e louvável. Clara obrigou-me a exprimir palavras, pois o meu silêncio já perdia força. Uma carta! A primeira e única carta que já remeti a alguém. Nunca recebi uma resposta, talvez seu silêncio já a seja.
            Não é que eu seja apático, que eu não sinta o amor (mas que palavra imprecisa!), eu só quero cumprir com o meu objetivo. Eu preciso. Os amigos que nunca tive têm amigos, as mulheres cujo amor neguei já estão comprometidas, creio. Minha família me compreendeu bem: nunca um telefonema. Talvez a maior mostra de amor que já recebi.
            Ao longo dos anos, fui nutrido por livros: não me cobram nada, não me buscam, não preciso amá-los. E, ainda, proporcionam a melhor conversa que podemos obter. Obter. Porque essa conversa não é líquida, ela é palpável. Eu TENHO Borges. Eu TENHO Göethe. Sem pedir, sem dar, sem me explicar. Abro o livro e pronto. Sou dono daquilo tudo – um dono silencioso e anônimo.
            Não passo meu conhecimento para ninguém e nem quero fazê-lo. Não sou professor, nem mestre, nem profeta. Sou apenas uma formiguinha. Uma formiga que sabe que sabe, mas que não ousa mostrar sabê-lo. Concorde comigo, é uma posição deveras confortável: ninguém inveja a folhinha que carrego, pois não sabem o que ela esconde. Assim, sou um ser que sempre tentou bastar a si: um ser-de-si e ser-para-si. Foi assim que segui vivendo num buraco afastado, encontrando pessoas apenas para práticas mercantis e trocas de serviços. Não nego que a troca entre seres humanos seja necessária, o que não admito é o seu excesso.
            Caminhei como uma sombra sem referente por longos anos, e isso me alegrava. A cada dia solitário, a cada dificuldade que superava sozinho, sentia-me mais forte. Fui cumprindo meu objetivo de coadjuvante até que o destino me amaldiçoasse. Isso se algo grandioso como destino existir (a ideia é assombrosa, não consigo concebê-la). Até que o acaso me batesse na face, melhor dizendo.
            Encontrei em um sebo um velho livro, de capa dura marrom, mas em lugar algum havia o nome de seu autor. Suas páginas carregavam palavras fortes – não me atrevo a lê-las novamente para dizer a você. Tive a infelicidade de comprá-lo e, ao chegar a casa, larguei tudo para poder lê-lo.
            A leitura estendeu-se por uma semana, com intervalos apenas para comer e ir ao banheiro. Na profundidade daquelas palavras, o maldito autor se escondia. Anônimo. Ousadia maior, muito maior que a minha: publicar tal livro e ocultar seu nome. Aquilo me causou um mal terrível, senti-me ultrapassado, uma criança que pensa já ser crescida.
            Comecei a imaginar possíveis nomes para o nosso autor. Com aquelas palavras, tão substanciais, só poderia ser filósofo. E que nome teria um filósofo? Seria ele alemão (boa parte de minhas leituras é feita nesse idioma)? Não, não era filósofo, ele não cometeria esse erro. Usava palavras com tamanha sagacidade que só poderia ser poeta, então. Ou, talvez, um romancista que se aventurava num ensaio, ocultando até mesmo sua técnica!
Não consegui penetrar tais palavras a ponto de alcançar seu criador, não consegui traçar um caminho para encontrá-lo. Nem mesmo uma sigla, nada. Não havia referências quanto à publicação, ano, língua, tradução... Fui abatido, terrivelmente derrotado por alguém maior que eu, alguém que fala (e que fala!) e nem ao menos existe!
Esse fato em si já foi o suficiente para me fazer pensar em toda a minha existência, meus planos, objetivos, tentativas de não existir. A única coisa a que me dediquei arduamente durante todos esses anos, destruída por um às do anonimato, mestre das palavras. Porém, sua cartada maior veio ao fim do livro: o último parágrafo...................................................................................................
Impossível reproduzi-lo!
            Ao terminar o livro, um arrependimento mortal invadiu meu ser. Nosso autor (não contente em ter arruinado meu propósito – e nada sou além de meu propósito) não é nada, nem ninguém. Ele não escreveu o livro: passou para mim tal missão. O livro é de minha autoria. Sou EU o autor!
            Fiquei tão atordoado com essa revelação, esse golpe baixo. Além de desbancar minha sombra, o não-sujeito ainda me tornou autor do livro. Não conseguia mais ler/escrever aquelas palavras (mas o fazia, mesmo com desprezo), palavras de outrem, minhas próprias palavras. Deu-me tudo o que exemplarmente recusei, jogou-me aos holofotes, nu.
            Permaneci sujo, cansado, encarando aquele livro, MEU livro. E também minha desgraça. E foi assim que me tornei o dono do mundo.

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Editado em 09/03/2015.

Nicolas Peixoto